sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Uma Noite Sem Lua

Andávamos por uma trilha úmida e escura. Pedras e lama se intercalavam com folhas espinhentas e teias de aranha em que pendiam os horrendos insetos. Nunca gostei de aranhas e estas tinham um aspecto ainda mais assustador. Aquela cor verde brilhosa e as longas patas alojando-se, as centenas, por entre os ramos, davam a impressão de possuir um veneno mais que mortal. Eu as sentia andando pelas minhas costas a cada passo. Podia ouvir meu coração bater no peito no mesmo ritmo dos nossos pés. Caminhávamos apressados. Uma sinistra sinfonia feita de estalos de galhos e folhas, cantos bizarros de pássaros ocultos por entre as árvores e o sopro gelado de ventos ruidosos.
Volta e meia parávamos para verificar a direção de nossa jornada, confirmar sinais de pegadas, ouvir ruídos ao longe. Andávamos cada vez mais rápido. A cadela quebrava esse frenético ritmo com seu ofegante respirar. Corria a nossa frente, latindo de vez em quando. Atrás de mim ia o capataz com a espingarda. Não sabíamos ao certo o que encontraríamos. Como toda a vez que caçávamos, não podíamos prever qual animal seria abatido. Contudo, sentíamos uma excitação terrível causada pela ânsia em devorar carne de caça. Então, éramos como as onças desesperadas por comer qualquer filhote menos avisado. Por outro lado, sentíamos um funesto aperto no peito, uma sensação de transgressão que nos forçava a sorrir amareladamente um para o outro. Eu sabia que não devíamos estar ali. Não era um dia propício a caçada. Estava tarde, logo estaria escuro, muito escuro. Essa noite não teria lua.
Por esses lados, a mata é densa, porém as trilhas são largas e pisoteadas. Segundo o velho capataz, não haveria razão para serem tão limpas as trilhas. Tudo parece como se houvesse um grande e constante tráfego a manter sempre abertas essas avenidas. Só que ele era o único morador a quilômetros. Excetuando eu mesmo, que estava por ali há apenas dois meses, ninguém maisconhecido freqüentaria estas trilhas. Vez por outra, o capataz desconfiava da passagem de invasores, posseiros e aventureiros. Às vezes, falava que estes caminhos eram utilizados por índios ainda selvagens ou por ciganos errantes. Falava estas coisas para me assustar. Mas eu sei que, no fundo de sua alma, sentia que estas trilhas eram mágicas e acreditava que por ali circulavam lobisomens, bruxas e fantasmas. Eu ria de suas especulações, preferindo acreditar que eram apenas fruto de sua imaginação ou de sua caduquice.
A maior dificuldade em nossa empreitada estava em manter o ritmo forte da andança. Sabíamos que, se não nos apressássemos, perderíamos nosso jantar. A certa altur,a paramos para ouvir os latidos altos da cadela que estava distante. Tensos, corremos em disparada.
Antes de sair de casa, eu mesmo havia conferido a munição da espingarda. Estava bem ajustada, porém, só tínhamos dois cartuchos bons. Eu sentia que era eu quem devia empunhá-la, mas o capataz era teimoso, duvidava da minha habilidade com a arma. Queria, ele mesmo, matar a presa. Era como uma compulsão patológica por matar e essa atividade lhe fazia luzir os olhos. Eu tratei de trazer comigo um pedaço de pau bem duro e pesado, um cabo de uma enxada velha que serviria como tacape em alguma emergência. De mãos vazias eu nunca sairia de casa. Ainda mais em noite sem lua.
Quando começou a escurecer, eu sabia que as coisas não estavam bem. Como eu disse, era uma estranha sensação de que não deveríamos estar ali. Ficava pensando na minha viagem, em meu estranho destino. Eu era um homem urbano que fugira da cidade. Foi por acaso que conhecera o velho em um bar bebendo pinga. Agora eu fazia companhia para ele nesse sertão bravio, nessas intermináveis e densamente negras noites sem lua. Nunca fui um homem do mato. Eu sou um ser urbano das grandes cidades. Estava perdido no meio dessas minhas expectativas e angústias. Naquele momento, eu não conseguia me situar para além da situação de que me encontrava, ou seja, de seguir uma cadela com porrete na mão, correndo atrás de meu jantar.
Ocorre que num piscar de olhos me perdi do velho. Quando dei por mim estava longe demais de sua presença. Os sinais da mata, como que se metamorfoseavam sob meus olhos. Tudo se tornou negro no meio das trevas da noite. Não distinguia nem ir de vir. Não só me perdera de meu companheiro de caçada como estava perdido na selva. Fiquei a pensar qual bifurcação tomara por engano. Os sons misturavam-se ao bater do coração. Tentei chamar gritando. Mas não ouvi resposta. Ao me perder em pensamentos, acabei por me perder na mata.
Minha primeira reação foi esperar. Mas os minutos demoraram séculos. Ao longe ouvi um tiro. Em um estalar de instante ínfimo, um mapa mental se formou e me localizou na floresta. Sabia que o velho estaria voltando para casa. Pus-me a voltar também. Primeiro andei lentamente. Tratei de encarar a caminhada como um passeio psicodélico por entre a floresta negra. A noite era mais escura que habitualmente. Os sons eram mais profundos... os cheiros mais fortes... os animais mais ferozes ...o medo mais gelado.
Por fim, fiquei sedento de uma sede estranha. Isso, um pouco pelo cansaço, um pouco pelo nervosismo. Mais à frente encontrei um córrego de águas cheirosas. Havia algumas flores de datura em toda a extensão de seu leito. São as elas as Damas da Noite. Seu perfume embriagava o ar. Suas flores abriam-se brancamente na escuridão. Não sei por quanto tempo fiquei ali contemplado sua beleza e sentindo seu perfume. A noite me deixara cego, mas estas pétalas me traziam a luz e seus odores me extasiavam. Ao me abaixar para beber água acabei por colocar a mão em uma coisa peluda. Assustei-me e dei um sobressalto. Apavorado procurei me defender. Mas não havia nada ali. Eu só poderia estar maluco. Olhei mais de perto e tive a impressão de ver o couro de um animal preto semi enterrado no chão, semi decomposto por vermes. Não tive como reconhecer de que animal se tratava, não era nenhum dos que eu conhecia. Tive nojo em ter bebido aquela água. De repente, senti centenas de formigas pelos meus braços e pernas. Debati-me violentamente até expulsá-las. Como o pânico havia me dominado, tratei de correr desesperadamente. Os segundos pareciam horas.
Não entendia nada do que estava acontecendo. Por fim tentei recordar a sensação quente daquela coisa peluda. Era macia como pelo de gato, mas a pelagem era mais comprida e espessa, como a de um cachorro ou urso.
Já mais perto de nosso rancho, senti novamente outra sensação estranha, embora houvesse esfriado com o cair da noite, eu sentia uma confortável quentura em minha pele e, como estivesse correndo desesperadamente, o suor estava ausente de minha pele.
Quando aproximei do barraco, a cadela latiu nervosamente para mim. Estranhei, pois ela nunca me ameaçava, éramos cúmplices de infantis brincadeiras, de forma que não entendi sua atitude violenta. Quanto mais eu chegava perto, mais bravia ela ficava, até que o velho abriu a porta e gritou apavoradamente: “- Deus e minha Nossa Senhora me salvem!” Eu apertei meu passo em sua direção para atender seu apelo, mas o velho mirou em mim a espingarda e atirou no meu peito. Ao cair sangrando, surpreso, sob a luz do lampião que iluminava o terreiro, deparei-me chocado com minha última experiência em vida: minha pele estava como aquela da fera do riacho! Saiam pelos horrendos de meus braços e pernas. Como último gesto, toquei minha face, senti meu focinho com minhas garras. Eu me tornara um monstro.
Ao acordar senti uma forte dor no pescoço. Estava deitado em minha cama. Não tive coragem de abrir os olhos. Tentei levantar, mas minhas pernas não respondiam aos comandos. Ergui a cabeça e vistoriei meu corpo. Toda aquela pelagem negra desaparecera. Com mais coragem, dei nova ordem as minhas pernas que, desta vez, obedeceram. Quando sentei na beira da cama pude constatar meu pesadelo e pensei que estivera sonhando. Mas ao olhar para o canto do quarto, vi a horrenda fera do riacho ressuscitada que agora me vigiava com dentes ferozes a mostra. Gritei por socorro chamando o velho e a fera respondeu com sua voz: “- Estou bem aqui!” Mostrou novamente seus caninos e num salto pulou sobre meu corpo rasgando minhas carnes.