quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Círculos de arame ( auto-biografia radical de John Stills, vulgo Arame Farpado)

De volta à cidade encontrei Sara. Estava grávida. Afirmava que o pai da criança era um amigo meu que, segundo Sara me confessou, sempre fora um azarado. E que azar era o dele em tê-la engravidado! Contava-me ela, entretanto, que não admitia dizer ao pai sobre seu biológico feito: ejacular e projetar em seu corpo milhões de células com rabo ávidas a fundirem-se com o ovo que estava nas trompas e tornarem-se, juntos, embrião! Sara não contaria a Sérgio, tinha plena convicção de que se tornaria mãe de uma criança sem pai: “-Verdadeira produção independente com muito orgulho!”, dizia. Seu desejo era expressado em altos brados entre um gole e outro de cerveja: “ Quero ser mais eu! Tô com tudo sobre controle!”. Eu pensava que se ela ficara grávida, não fora sem motivo, não fora sem planejamento, não dava ponto sem nó, não fora sem razão e nem sem uma boa foda.
Sara de tola não tinha nada. Ela é do tipo meio malandra, meio idiota. Faz as maiores e mais mirabolantes jogadas pra conseguir as maiores e mais extravagantes quinquilharias. Eu sabia, contudo e no fundo, que tal história, de estar grávida de Sérgio, era pretexto para filar um cigarro. Mulher maluca, enquanto contava estórias, ríamos como doidos da precariedade de nossas vidas, inventando problemas maiores do que os que tínhamos pra esquecer quem éramos de verdade: desocupados.
Quando a conversa descambou para um lado mais deprê, não dei bola, deixei-a afundar-se nas divagações e asneiras e fiquei comigo mesmo pensando: “De lixo o mundo está cheio, e eu sou a prova viva de que o lixo está vivo”. Através destas conversas sem pé, nem cabeça, acabei lhe dando (e ela fumando) o maço inteiro de cigarros. Com a mão esquerda os acendia, tal como galante e cortez cavalheiro. Grávida ou não (é claro que não, nem barriga tinha! É que, sinceramente, acredito que mulheres grávidas não devem fumar!) nada mais me restava: olhar as estrelas e de vez em quando suas tetas. Fumar com Sara, trocar mentiras absurdas com Sara, falar sobre sua falsa gravidez, sua falsa criança e seu falso amante-pai, beber com Sara, trepar com Sara (também sou contra transar com grávidas!). Depois descartá-la. Bem, acho que não há nada de mais em fantasiar, ainda mais quando se retorna ao ponto de partida. Sara é muito feia, é mentirosa, pouco confiável e ainda mais ta saindo com amigo meu. O negócio é cair fora. Então voltemos onde tudo começou.
Há cinco meses atrás reli On The Road de Jack Kerouak. Nada de especial, só que resolvi sair por aí de carona depois de um grandessíssimo pileque. Não imediatamente depois do pileque, pois, entendam, imediatamente depois de um grandessíssimo pileque vem uma grandessíssima ressaca. Foi então, para dizer a verdade, após um dia de cama, náuseas e muita dor de cabeça que resolvi partir para nunca mais voltar. Lá estava eu na beira do asfalto ...mochila nas costas... dedão arriado pra pedir carona. Quem já fez isso bem sabe das expectativas e esperas. Definitivamente, pedir carona é um exercício de paciência suprema. É estar no acostamento de uma estrada violenta, onde, por hora, passam um milhão de milhões de carros, todos em velocidade elevada. Passam caminhões barulhentos e fumacentos e como moscas atrás da M. são seguidos por famílias inteiras de pequenos veículos alinhados. Um balet dramático que parece como um daqueles dragões de teatro oriental. A cauda longa é composta por um mosaico de sorrisos e caras feias. De acenos de mão e/ou outros sinais negativos. Puta que o pariu! O pior é que a cada vez que um babaca parava para me dar carona, eu me lançava em uma corrida desesperada no acostamento... nunca me toquei que poderia elegantemente andar até o veículo. Esse desespero de, ao ver a carona em potencial, sair correndo como louco e, esbaforido, perguntar pela janela do veículo: “está indo para onde?” é, talvez, a coisa mais idiota que me sujeitei a fazer na vida. Como me sentia otário! Dar sorrisos falsos para estranhos birutas (eu mesmo nunca dou carona!). As viagens sem destino são sempre rotinas em sua extrema falta de rotina. O desconhecido é uma matéria amorfa em que nos lançamos impiedosamente. Ocorre que a transformação do desconhecido em conhecido, às vezes, é laboriosamente tediosa. Nem só do espanto nasce o conhecimento, ele também nasce da tortura e do tédio! Para mim, viajar de carona, são noites por aí bebendo (tudo e qualquer coisa), dias esperando (não sei o que)... De fato, as minhas partidas para nunca mais voltar sempre me levam onde tudo começou.
Bem, é que eu queria contar sobre o que pensei naquele dia em que estava de ressaca, partindo de carona para qualquer lugar. Eu encavara tudo como uma intensa investida contra uma vida normal, rotineira, cotidiana e medíocre. Lembro que, ao mesmo tempo em que apertava os cordões do fecho de minha mochila, cortei-me com um ilhós frouxo. Um corte superficial, mas muito doído. Parecido com minhas paixões, como um desesperado grito lançado ao ar, como a última súplica de um moribundo, cuja causa morte é nada mais que arranhões que se curariam facilmente. Naquele dia, ao cortar-me, acabei por me dar conta da fragilidade do meu corpo. Fiz imediatamente um inventário dele: cabeça, dois braços, duas pernas, dois pés, duas mãos, um nariz, duas narinas, uma boca, uma língua, um peito, dois mamilos, duas orelhas, ossos e caveira, costas, milhares de cabelos, pelos e pentelhos, bunda, várias entranhas, fígado, rins, coração, pau, duas bolas, dez dedos (vinte com os pés, sendo um cortado superficialmente)! Eis o inventário de minha constituição corporal Tentando localizar tudo o que podia lembrar ou perceber existência, como que num monólogo ensurdecedor, fui pegando todas as peças da patética lista e joguei-as debaixo de um rolo compressor...
É isso aí! Debaixo do rolo compressor pra esmagar tudo. Vi todo o meu corpo virando carne moída... verdadeiro guisado mal passado. Tal qual a morte das formigas, que tanto aprecio esmagá-las, joguei-me debaixo do rolo compressor, esfacelado, moído, triturado, ralado, esmagado, sem osso, nem pescoço... como carne moída no açougue! Como um hamburger, eu era sangue para todo o lado. Fiquei com um puta nojo de mim mesmo! O rolo compressor sempre vem correndo atrás de mim. Sou como a formiga, uma pequena máquina biológica movendo-se incansavelmente com ligeiras perninhas e um par de indiscretas antenas... Esmagar formigas é um ato terrível, mas ao mesmo tempo tão reconfortante. É da imensa angústia de oprimido que tiro as forças para ser opressor ( ou melhor, comprimido e compressor!)
Um basta para a morte cruel de formigas! A partir de hoje só as matarei com água fervendo!
Pensar em meu corpo era algo que fazia diretamente uma conexão com pensar sobre minha morte. De fato, mais uma vez, sempre volto para os mesmos lugares. Nessa viagem de pensar, acabei por voltar, de novo, para mim. Estava vivo!
É que dias antes eu havia visto um acidente de carro e aquilo me impressionou demais. Fora uma capotagem. A menina estava com a cabeça esmagada e berrava sem parar... Demorou horas para morrer... O corpo é muito frágil. Qualquer pancadinha a 180 Km/h faz voar carne para tudo quanto é lado. Na dimensão corpórea somos todos iguais. Carne.
Certa feita veio a mim um pedreiro. Tomamos alguns litros (ou o parte deles) em algum bar em Minas Gerais. Era um tipo esquisito. Negro como noite sem lua. Velho como a primeira edição da bíblia. Falava como um rádio AM. Bebia como um opala 6 cc. Ria como uma criança. Seu João era um desafortunado ser de humildes ambições terrenas. Seu João era o herói de todas as minhas desilusões. Sem filhos, era pai perfeito. Sem mulher, o marido perfeito. Trabalhava na pedreira de sol a sol... quebrando pedras (óbvio). Mais ou menos como costumam representar a condenação dos trabalhos forçados nos filmes. Uma condenação perpétua que desde a infância carregava com o prazer que Cristo carregou a cruz (só crente crê nisso). Quebrando pedra a marretada o dia inteiro. Cada dedo do Seu João tinha a espessura de um rifle 12.E mesmo assim tocava violão tão bem, mas tão bem, que nem me arrisquei tirar o instrumento de suas mãos.
E ele me falou:
- O importante não é ter, mas ser!
É que achei tão bonito... tão anti-burguês, tão anti-capitalista, tão heróica a sua sina, sua triste figura, sua humilde existência, nem por isso menos rica que qualquer outra.
Só agora descubro seu feitiço. Esse Seu João era um bruxo maligno que vivia naquelas bandas a enfeitiçar os forasteiros fracos de espírito e sugar deles a essência de suas almas. Seu feitiço consistia em fazer com que os forasteiros sintam vergonha de si mesmos. Vergonha de carregar tão pequenas mazelas em malas cheias de mágoas. Seu feitiço, pois, é ser! Mas ele não era um feiticeiro como o daquelas imagens vulgares do tipo com chapéu de cone! Era mais do tipo Don Juan do Castañeda. Uma espécie de sábio sabido velho do interior, do mais longínquo e inóspito sertão, que faz chá de ervas psicotrópicas e, ao fim, desenvolve uma verdadeira filosofia capaz de argumentar avassaladoramente contra qualquer fiapo de modernidade.
Maldito feiticeiro! Nunca mais fui o mesmo. De lá para cá volto sempre aos mesmos lugares.
Outra certa vez, em uma cidade distante, escrevi uma carta para mim mesmo. Postei no correio. Esperava recebê-la quando voltasse para casa. Não dizia nada. Era tal qual cartas secretas escritas com sumo de limão que somente sob a luz revelam os escritos. Essa minha carta só faria sentido à luz de alguém que a lesse no futuro. E esse alguém seria eu mesmo, modificado pela experiência do retorno. Hoje quando releio essa carta sinto e vejo que ela não diz nada com nada, era mais para ter o envelope carimbado com aquele carimbo redondinho dos correios, como que para provar a mim mesmo que eu estive no tal lugar. Mas aquele não sou mais eu! Nome do Município: Puta Que o Pariu, Distrito: Onde o Judas Perdeu as Botas, Endereço: Avenida Brasil S/N.
Entretanto, o que eu queria contar mesmo não são estes aspectos grosseiros de uma viagem a nada e que só fez trazer-me de volta ao ponto de partida. Como que cruzando um tempo ritual, que, do caos, ao fim, só marca e afirma a própria ordem soberana do cotidiano. Queria contar sobre os círculos de arame que descobri. Circulos feitos de fios lineares, delicadamente dobrados, cujas pontas são perfeitamente soldadas, de forma que se perdeu o saber localizar seu ponto de junção. Queria falar da circularidade que assumem essas formas, que são antes de tudo, lineares. Do vazio que elas têm por dentro. Da frieza de sua estrutura metálica. Da propriedade de amassarem-se fragilmente e perderem sua forma. Dizem que o círculo representa o feminino. Talvez seja algum tipo de arquétipo Jungiano (coisa para intelectualóides). Não conheço muitos círculos de arame. Só sei que os meus círculos são de arame farpado.
E para aqueles que também pensam que viver é um constante suicidar-se, vai uma citação de Durkheim de “O Suicídio” ( famoso sociólogo francês que morreu de desgosto sem se suicidar).
“O homem não poderia viver se fosse inteiramente refratário à tristeza. Há muitas dores às quais só podemos nos adaptar gostando delas, e o prazer que temos nisso tem necessariamente algo de melancólico. A melancolia, portanto, só é mórbida quando ocupa um lugar excessivo na vida; mas não é menos mórbido excluí-la completamente. É preciso que o gosto pela explosão de alegria seja moderado pelo gosto contrário; só sob essa condição ele manterá a medida e estará em harmonia com as coisas.” ( citação da pg. 477)