quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Conto do Carro a Cento e Setenta

Bem, o que passo a contar aconteceu há uns três anos. Era uma quarta-feira fria e escura. Saí do trabalho lá pelas sete horas. Estava com uma fome enorme. Fui para o bar, lá fiz um lanche e comecei a beber, como sempre... No primeiro trago uma promessa: hoje é só esta cerveja. No segundo, uma realidade, já não cumpriria a tal promessa. Meu amigo Pedro apareceu e lá ficamos a conversar. Eu estava tranqüilo.Havíamos bebido deliciosas cervejas, inebriantes vinhos, um caloroso conhaque, uma garrafa de... esqueci, acho que era vodca. Eu não lembro direito das coisas quando bebo vodca. Mas bem, voltemos ao conto.
Ao sair fui direto para casa. Lembro sentir um entusiasmo alucinante, mas não me achava embriagado, afinal foram apenas alguns drinks... No ônibus já não me continha, a pressa estava me matando. Quando subi as escadarias, senti uma forte energia, um ímpeto incontrolável... lá estava ele... meu carro, na garagem, possante, seis cilindros. Eu tinha mania de ir ao trabalho de ônibus e usar o meu carro só para passear.
Peguei a chave e sai com a super máquina... Faróis acessos, uma leve neblina... passei no posto de combustível, abasteci, comprei três cervejas e um charuto cubano. A noite estava com um indescritível ar de novidade. Avenida livre, cento e setenta. O ronco era lindo, a velocidade, sempre a velocidade..., tudo parecia não ter controle e na barriga, o frio de um punhal penetrante de gelo. Ao acabar o trecho, senti que o motor deu uma falhada... tentei manter a aceleração... não recordo bem, acho que o motor pareceu perdeu potência....
De repente tudo voltou ao normal... fiz um retorno no final da pista e voltei o mesmo trecho... cento e setenta... agora mais firme, sem temores, friamente segui nesta velocidade o quanto pude... a avenida estava estranhamente deserta. As curvas eram longas e permitiam acelerar. Meu cérebro calculava friamente as manobras, era como se eu estivesse em um autódromo naquela larga avenida deserta. Ao chegar a minha casa, subi lentamente as escadas, a neblina envolvente agora era densa cobrindo tudo. Abri a porta e deixei cair uma das cervejas que não quebrou. Liguei a tv e fiquei bebendo e fumando. O charuto tinha um gosto suave e adocicado. A fumaça era como a neblina lá fora, densa e envolvente. Na mistura de gostos estava o verdadeiro segredo da combinação, só lembro que adormeci.
Bem, ao acordar já era de manhã, estava esperando minha mulher, ela devia ter chegado... não consegui ir trabalhar... senti-me frio... olhei para fora e ainda havia neblina...Tentei telefonar, mas ninguém atendeu....nem o disk pizza... fiquei um tempo deitado e o dia passou todo enquanto eu ficava lembrando da velocidade. Quando a noite chegou percebi que eu havia mudado, só não detectava em que consistia a mudança. Olhei na garagem e lá estava o meu carro. Fiz o mesmo trajeto da noite anterior. Não havia ninguém nas ruas...
Bem, de lá para cá faço isto toda noite tentado entender se alguma coisa aconteceu comigo naquela reta, na hora que o motor falhou. Meus telefonemas ninguém atende. O telefone não toca e na rua não vejo ninguém. Tudo está sempre dramaticamente deserto. Além de rememorar aquela noite, o que faço e só ficar pensando... por onde anda minha mulher...