quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Ride with me babe... (John Stills ouvindo Steppenwolf)

Veja, quero agora, não depois. Mas, não tudo de uma vez. Sigamos com uma nervosa calma.Como a da tormenta que furiosa levanta tudo a sua frente sem em nada tocar! Sigamos sem perder a suavidade do frescor da alma! Somos virgens e imaculados frente ao futuro. Pois é de nós que o futuro depende e não nós dele. Levantemos um brinde vulcânico! Somos crianças mortas antes de nascer!

Suba na garupa Baby. Seguiremos até o fim dos tempos.

Não tenha medo até que venha a grande tempestade e, enquanto ela não chega, deixe voar os cabelos. Embaraçar tuas tranças tal como estão nossos sonhos. Fios despertos de uma realidade impossível, porém, tenra e atraente.
Um gelado vento irá congelar nosso rosto, mas não vai secar nosso amor.

Venha Baby, vamos comigo até o fim do mundo!

Meu blusão preto de couro, uma velha estética que não desiste em deixar nossa vida. Fica sendo vida como romance, urbano e selvagem, ao mesmo tempo. Somos do século XX perdidos no XXI! Não haverá drama em nossa esteira. Nosso amor é a cópia da vida ou ela própria ? Não importa!
Quando vier o grande cogumelo, subindo gigante pelos céus em fogo, não esqueça, vou acelerar mais o motor, segure firme em meu braço. Quero sentir de frente e de peito aberto a onda mortal que ceifa as cabeças desatentas.
Não tenha medo “baby”, apenas aperte meu corpo.
Vamos juntos até o grandioso Fim.

Em nenhum momento! O melhor não esquecerei! Em nenhum momento!
Foi você a única ternura. E eu sei que foi Amor, sim!
Sei que me ama tal como eu a você e, ainda, muito mais que eu, a mim mesmo!
Não esquecerei seu perfume e seguiremos até o fim dos tempos, até o fim do mundo e até o grandioso Fim!
Não perderemos nada do espetacular, pois dele somos protagonistas.
Então, agora baby, diga alguma coisa, pois só sua voz poderá calar meu coração aflito, ainda que cheio de coragem!

* * *
E assim, louco, balbuciando eternas palavras de sua boca perdida na grande barba setentista, seguiu só, maltrapilho, pela grande avenida. Enquanto as centenas de carros zumbiam no ar ele olhava, atônito, para mais um por do sol solitário!

NO FIM DA DOSE

No instante, o gosto amargo...
E o frio, pela boca, desce...
É quando, elevado ao máximo,
se distingue quem sabe!

Para quem sabe, não há
como deixar de saber,
pois, uma vez sabido,
como poderá esquecer?

E se o corpo está cheio...
E se o bolso está cheio ...
E se a alma vazia...
E se a sala vazia?

Pode, então, o garçom
aparecer junto com o bater
das pedras meio derretidas
no fim da dose.
Então é só pedir...
E começar tudo outra vez...

Inspirações Morrisonianas ( John Stills ouvindo The Doors)



Veja as luzes lá fora. São as luzes da cidade brilhando para nós. Você vê. Escute-as. Basta um olhar sobre os tigres para ver que se está matando alguém. Não é um grande negócio mas, basta. Alguém carrega um corpo e você pega, olha, cheira e cai fora de mansinho. São as luzes vermelhas soando com a chuva. Você conhece o progresso das estrelas e as chaves da vida? Você pode inventar alguns símbolos de cerimônias esquecidas, estas copulações de mãe com flores de fatos sangrando pela tevê. E algo pianístico, como a lua, que rouba as feras da próxima quadra.

Ninguém criou esta morte morrendo. Nós vivemos e morremos como homens de luz. Tentamos encontrar uma visão daquela morte verde. Não é hora para decidir sobre estas coisas. É hora de tocar com o punho de trovão e destruir todo o resto. O caminhão que traz o assassino é uma mentira podre. Pois não há como cumprir a mentira. Onde está meu vinho? Onde está meu vinho da morte? Morte de segunda feira?

É difícil acreditar que mais um será vingado pela tragédia que romanos e gregos fizeram. O problema é a marca de toda solução. Os caminhos mais curtos não são a chave do candelabro das doenças que fazem marinheiros ficarem presos em programas de tevê.
Tenho dito... pobre de quem ouve!

Círculos de arame ( auto-biografia radical de John Stills, vulgo Arame Farpado)

De volta à cidade encontrei Sara. Estava grávida. Afirmava que o pai da criança era um amigo meu que, segundo Sara me confessou, sempre fora um azarado. E que azar era o dele em tê-la engravidado! Contava-me ela, entretanto, que não admitia dizer ao pai sobre seu biológico feito: ejacular e projetar em seu corpo milhões de células com rabo ávidas a fundirem-se com o ovo que estava nas trompas e tornarem-se, juntos, embrião! Sara não contaria a Sérgio, tinha plena convicção de que se tornaria mãe de uma criança sem pai: “-Verdadeira produção independente com muito orgulho!”, dizia. Seu desejo era expressado em altos brados entre um gole e outro de cerveja: “ Quero ser mais eu! Tô com tudo sobre controle!”. Eu pensava que se ela ficara grávida, não fora sem motivo, não fora sem planejamento, não dava ponto sem nó, não fora sem razão e nem sem uma boa foda.
Sara de tola não tinha nada. Ela é do tipo meio malandra, meio idiota. Faz as maiores e mais mirabolantes jogadas pra conseguir as maiores e mais extravagantes quinquilharias. Eu sabia, contudo e no fundo, que tal história, de estar grávida de Sérgio, era pretexto para filar um cigarro. Mulher maluca, enquanto contava estórias, ríamos como doidos da precariedade de nossas vidas, inventando problemas maiores do que os que tínhamos pra esquecer quem éramos de verdade: desocupados.
Quando a conversa descambou para um lado mais deprê, não dei bola, deixei-a afundar-se nas divagações e asneiras e fiquei comigo mesmo pensando: “De lixo o mundo está cheio, e eu sou a prova viva de que o lixo está vivo”. Através destas conversas sem pé, nem cabeça, acabei lhe dando (e ela fumando) o maço inteiro de cigarros. Com a mão esquerda os acendia, tal como galante e cortez cavalheiro. Grávida ou não (é claro que não, nem barriga tinha! É que, sinceramente, acredito que mulheres grávidas não devem fumar!) nada mais me restava: olhar as estrelas e de vez em quando suas tetas. Fumar com Sara, trocar mentiras absurdas com Sara, falar sobre sua falsa gravidez, sua falsa criança e seu falso amante-pai, beber com Sara, trepar com Sara (também sou contra transar com grávidas!). Depois descartá-la. Bem, acho que não há nada de mais em fantasiar, ainda mais quando se retorna ao ponto de partida. Sara é muito feia, é mentirosa, pouco confiável e ainda mais ta saindo com amigo meu. O negócio é cair fora. Então voltemos onde tudo começou.
Há cinco meses atrás reli On The Road de Jack Kerouak. Nada de especial, só que resolvi sair por aí de carona depois de um grandessíssimo pileque. Não imediatamente depois do pileque, pois, entendam, imediatamente depois de um grandessíssimo pileque vem uma grandessíssima ressaca. Foi então, para dizer a verdade, após um dia de cama, náuseas e muita dor de cabeça que resolvi partir para nunca mais voltar. Lá estava eu na beira do asfalto ...mochila nas costas... dedão arriado pra pedir carona. Quem já fez isso bem sabe das expectativas e esperas. Definitivamente, pedir carona é um exercício de paciência suprema. É estar no acostamento de uma estrada violenta, onde, por hora, passam um milhão de milhões de carros, todos em velocidade elevada. Passam caminhões barulhentos e fumacentos e como moscas atrás da M. são seguidos por famílias inteiras de pequenos veículos alinhados. Um balet dramático que parece como um daqueles dragões de teatro oriental. A cauda longa é composta por um mosaico de sorrisos e caras feias. De acenos de mão e/ou outros sinais negativos. Puta que o pariu! O pior é que a cada vez que um babaca parava para me dar carona, eu me lançava em uma corrida desesperada no acostamento... nunca me toquei que poderia elegantemente andar até o veículo. Esse desespero de, ao ver a carona em potencial, sair correndo como louco e, esbaforido, perguntar pela janela do veículo: “está indo para onde?” é, talvez, a coisa mais idiota que me sujeitei a fazer na vida. Como me sentia otário! Dar sorrisos falsos para estranhos birutas (eu mesmo nunca dou carona!). As viagens sem destino são sempre rotinas em sua extrema falta de rotina. O desconhecido é uma matéria amorfa em que nos lançamos impiedosamente. Ocorre que a transformação do desconhecido em conhecido, às vezes, é laboriosamente tediosa. Nem só do espanto nasce o conhecimento, ele também nasce da tortura e do tédio! Para mim, viajar de carona, são noites por aí bebendo (tudo e qualquer coisa), dias esperando (não sei o que)... De fato, as minhas partidas para nunca mais voltar sempre me levam onde tudo começou.
Bem, é que eu queria contar sobre o que pensei naquele dia em que estava de ressaca, partindo de carona para qualquer lugar. Eu encavara tudo como uma intensa investida contra uma vida normal, rotineira, cotidiana e medíocre. Lembro que, ao mesmo tempo em que apertava os cordões do fecho de minha mochila, cortei-me com um ilhós frouxo. Um corte superficial, mas muito doído. Parecido com minhas paixões, como um desesperado grito lançado ao ar, como a última súplica de um moribundo, cuja causa morte é nada mais que arranhões que se curariam facilmente. Naquele dia, ao cortar-me, acabei por me dar conta da fragilidade do meu corpo. Fiz imediatamente um inventário dele: cabeça, dois braços, duas pernas, dois pés, duas mãos, um nariz, duas narinas, uma boca, uma língua, um peito, dois mamilos, duas orelhas, ossos e caveira, costas, milhares de cabelos, pelos e pentelhos, bunda, várias entranhas, fígado, rins, coração, pau, duas bolas, dez dedos (vinte com os pés, sendo um cortado superficialmente)! Eis o inventário de minha constituição corporal Tentando localizar tudo o que podia lembrar ou perceber existência, como que num monólogo ensurdecedor, fui pegando todas as peças da patética lista e joguei-as debaixo de um rolo compressor...
É isso aí! Debaixo do rolo compressor pra esmagar tudo. Vi todo o meu corpo virando carne moída... verdadeiro guisado mal passado. Tal qual a morte das formigas, que tanto aprecio esmagá-las, joguei-me debaixo do rolo compressor, esfacelado, moído, triturado, ralado, esmagado, sem osso, nem pescoço... como carne moída no açougue! Como um hamburger, eu era sangue para todo o lado. Fiquei com um puta nojo de mim mesmo! O rolo compressor sempre vem correndo atrás de mim. Sou como a formiga, uma pequena máquina biológica movendo-se incansavelmente com ligeiras perninhas e um par de indiscretas antenas... Esmagar formigas é um ato terrível, mas ao mesmo tempo tão reconfortante. É da imensa angústia de oprimido que tiro as forças para ser opressor ( ou melhor, comprimido e compressor!)
Um basta para a morte cruel de formigas! A partir de hoje só as matarei com água fervendo!
Pensar em meu corpo era algo que fazia diretamente uma conexão com pensar sobre minha morte. De fato, mais uma vez, sempre volto para os mesmos lugares. Nessa viagem de pensar, acabei por voltar, de novo, para mim. Estava vivo!
É que dias antes eu havia visto um acidente de carro e aquilo me impressionou demais. Fora uma capotagem. A menina estava com a cabeça esmagada e berrava sem parar... Demorou horas para morrer... O corpo é muito frágil. Qualquer pancadinha a 180 Km/h faz voar carne para tudo quanto é lado. Na dimensão corpórea somos todos iguais. Carne.
Certa feita veio a mim um pedreiro. Tomamos alguns litros (ou o parte deles) em algum bar em Minas Gerais. Era um tipo esquisito. Negro como noite sem lua. Velho como a primeira edição da bíblia. Falava como um rádio AM. Bebia como um opala 6 cc. Ria como uma criança. Seu João era um desafortunado ser de humildes ambições terrenas. Seu João era o herói de todas as minhas desilusões. Sem filhos, era pai perfeito. Sem mulher, o marido perfeito. Trabalhava na pedreira de sol a sol... quebrando pedras (óbvio). Mais ou menos como costumam representar a condenação dos trabalhos forçados nos filmes. Uma condenação perpétua que desde a infância carregava com o prazer que Cristo carregou a cruz (só crente crê nisso). Quebrando pedra a marretada o dia inteiro. Cada dedo do Seu João tinha a espessura de um rifle 12.E mesmo assim tocava violão tão bem, mas tão bem, que nem me arrisquei tirar o instrumento de suas mãos.
E ele me falou:
- O importante não é ter, mas ser!
É que achei tão bonito... tão anti-burguês, tão anti-capitalista, tão heróica a sua sina, sua triste figura, sua humilde existência, nem por isso menos rica que qualquer outra.
Só agora descubro seu feitiço. Esse Seu João era um bruxo maligno que vivia naquelas bandas a enfeitiçar os forasteiros fracos de espírito e sugar deles a essência de suas almas. Seu feitiço consistia em fazer com que os forasteiros sintam vergonha de si mesmos. Vergonha de carregar tão pequenas mazelas em malas cheias de mágoas. Seu feitiço, pois, é ser! Mas ele não era um feiticeiro como o daquelas imagens vulgares do tipo com chapéu de cone! Era mais do tipo Don Juan do Castañeda. Uma espécie de sábio sabido velho do interior, do mais longínquo e inóspito sertão, que faz chá de ervas psicotrópicas e, ao fim, desenvolve uma verdadeira filosofia capaz de argumentar avassaladoramente contra qualquer fiapo de modernidade.
Maldito feiticeiro! Nunca mais fui o mesmo. De lá para cá volto sempre aos mesmos lugares.
Outra certa vez, em uma cidade distante, escrevi uma carta para mim mesmo. Postei no correio. Esperava recebê-la quando voltasse para casa. Não dizia nada. Era tal qual cartas secretas escritas com sumo de limão que somente sob a luz revelam os escritos. Essa minha carta só faria sentido à luz de alguém que a lesse no futuro. E esse alguém seria eu mesmo, modificado pela experiência do retorno. Hoje quando releio essa carta sinto e vejo que ela não diz nada com nada, era mais para ter o envelope carimbado com aquele carimbo redondinho dos correios, como que para provar a mim mesmo que eu estive no tal lugar. Mas aquele não sou mais eu! Nome do Município: Puta Que o Pariu, Distrito: Onde o Judas Perdeu as Botas, Endereço: Avenida Brasil S/N.
Entretanto, o que eu queria contar mesmo não são estes aspectos grosseiros de uma viagem a nada e que só fez trazer-me de volta ao ponto de partida. Como que cruzando um tempo ritual, que, do caos, ao fim, só marca e afirma a própria ordem soberana do cotidiano. Queria contar sobre os círculos de arame que descobri. Circulos feitos de fios lineares, delicadamente dobrados, cujas pontas são perfeitamente soldadas, de forma que se perdeu o saber localizar seu ponto de junção. Queria falar da circularidade que assumem essas formas, que são antes de tudo, lineares. Do vazio que elas têm por dentro. Da frieza de sua estrutura metálica. Da propriedade de amassarem-se fragilmente e perderem sua forma. Dizem que o círculo representa o feminino. Talvez seja algum tipo de arquétipo Jungiano (coisa para intelectualóides). Não conheço muitos círculos de arame. Só sei que os meus círculos são de arame farpado.
E para aqueles que também pensam que viver é um constante suicidar-se, vai uma citação de Durkheim de “O Suicídio” ( famoso sociólogo francês que morreu de desgosto sem se suicidar).
“O homem não poderia viver se fosse inteiramente refratário à tristeza. Há muitas dores às quais só podemos nos adaptar gostando delas, e o prazer que temos nisso tem necessariamente algo de melancólico. A melancolia, portanto, só é mórbida quando ocupa um lugar excessivo na vida; mas não é menos mórbido excluí-la completamente. É preciso que o gosto pela explosão de alegria seja moderado pelo gosto contrário; só sob essa condição ele manterá a medida e estará em harmonia com as coisas.” ( citação da pg. 477)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Uma Noite Sem Lua

Andávamos por uma trilha úmida e escura. Pedras e lama se intercalavam com folhas espinhentas e teias de aranha em que pendiam os horrendos insetos. Nunca gostei de aranhas e estas tinham um aspecto ainda mais assustador. Aquela cor verde brilhosa e as longas patas alojando-se, as centenas, por entre os ramos, davam a impressão de possuir um veneno mais que mortal. Eu as sentia andando pelas minhas costas a cada passo. Podia ouvir meu coração bater no peito no mesmo ritmo dos nossos pés. Caminhávamos apressados. Uma sinistra sinfonia feita de estalos de galhos e folhas, cantos bizarros de pássaros ocultos por entre as árvores e o sopro gelado de ventos ruidosos.
Volta e meia parávamos para verificar a direção de nossa jornada, confirmar sinais de pegadas, ouvir ruídos ao longe. Andávamos cada vez mais rápido. A cadela quebrava esse frenético ritmo com seu ofegante respirar. Corria a nossa frente, latindo de vez em quando. Atrás de mim ia o capataz com a espingarda. Não sabíamos ao certo o que encontraríamos. Como toda a vez que caçávamos, não podíamos prever qual animal seria abatido. Contudo, sentíamos uma excitação terrível causada pela ânsia em devorar carne de caça. Então, éramos como as onças desesperadas por comer qualquer filhote menos avisado. Por outro lado, sentíamos um funesto aperto no peito, uma sensação de transgressão que nos forçava a sorrir amareladamente um para o outro. Eu sabia que não devíamos estar ali. Não era um dia propício a caçada. Estava tarde, logo estaria escuro, muito escuro. Essa noite não teria lua.
Por esses lados, a mata é densa, porém as trilhas são largas e pisoteadas. Segundo o velho capataz, não haveria razão para serem tão limpas as trilhas. Tudo parece como se houvesse um grande e constante tráfego a manter sempre abertas essas avenidas. Só que ele era o único morador a quilômetros. Excetuando eu mesmo, que estava por ali há apenas dois meses, ninguém maisconhecido freqüentaria estas trilhas. Vez por outra, o capataz desconfiava da passagem de invasores, posseiros e aventureiros. Às vezes, falava que estes caminhos eram utilizados por índios ainda selvagens ou por ciganos errantes. Falava estas coisas para me assustar. Mas eu sei que, no fundo de sua alma, sentia que estas trilhas eram mágicas e acreditava que por ali circulavam lobisomens, bruxas e fantasmas. Eu ria de suas especulações, preferindo acreditar que eram apenas fruto de sua imaginação ou de sua caduquice.
A maior dificuldade em nossa empreitada estava em manter o ritmo forte da andança. Sabíamos que, se não nos apressássemos, perderíamos nosso jantar. A certa altur,a paramos para ouvir os latidos altos da cadela que estava distante. Tensos, corremos em disparada.
Antes de sair de casa, eu mesmo havia conferido a munição da espingarda. Estava bem ajustada, porém, só tínhamos dois cartuchos bons. Eu sentia que era eu quem devia empunhá-la, mas o capataz era teimoso, duvidava da minha habilidade com a arma. Queria, ele mesmo, matar a presa. Era como uma compulsão patológica por matar e essa atividade lhe fazia luzir os olhos. Eu tratei de trazer comigo um pedaço de pau bem duro e pesado, um cabo de uma enxada velha que serviria como tacape em alguma emergência. De mãos vazias eu nunca sairia de casa. Ainda mais em noite sem lua.
Quando começou a escurecer, eu sabia que as coisas não estavam bem. Como eu disse, era uma estranha sensação de que não deveríamos estar ali. Ficava pensando na minha viagem, em meu estranho destino. Eu era um homem urbano que fugira da cidade. Foi por acaso que conhecera o velho em um bar bebendo pinga. Agora eu fazia companhia para ele nesse sertão bravio, nessas intermináveis e densamente negras noites sem lua. Nunca fui um homem do mato. Eu sou um ser urbano das grandes cidades. Estava perdido no meio dessas minhas expectativas e angústias. Naquele momento, eu não conseguia me situar para além da situação de que me encontrava, ou seja, de seguir uma cadela com porrete na mão, correndo atrás de meu jantar.
Ocorre que num piscar de olhos me perdi do velho. Quando dei por mim estava longe demais de sua presença. Os sinais da mata, como que se metamorfoseavam sob meus olhos. Tudo se tornou negro no meio das trevas da noite. Não distinguia nem ir de vir. Não só me perdera de meu companheiro de caçada como estava perdido na selva. Fiquei a pensar qual bifurcação tomara por engano. Os sons misturavam-se ao bater do coração. Tentei chamar gritando. Mas não ouvi resposta. Ao me perder em pensamentos, acabei por me perder na mata.
Minha primeira reação foi esperar. Mas os minutos demoraram séculos. Ao longe ouvi um tiro. Em um estalar de instante ínfimo, um mapa mental se formou e me localizou na floresta. Sabia que o velho estaria voltando para casa. Pus-me a voltar também. Primeiro andei lentamente. Tratei de encarar a caminhada como um passeio psicodélico por entre a floresta negra. A noite era mais escura que habitualmente. Os sons eram mais profundos... os cheiros mais fortes... os animais mais ferozes ...o medo mais gelado.
Por fim, fiquei sedento de uma sede estranha. Isso, um pouco pelo cansaço, um pouco pelo nervosismo. Mais à frente encontrei um córrego de águas cheirosas. Havia algumas flores de datura em toda a extensão de seu leito. São as elas as Damas da Noite. Seu perfume embriagava o ar. Suas flores abriam-se brancamente na escuridão. Não sei por quanto tempo fiquei ali contemplado sua beleza e sentindo seu perfume. A noite me deixara cego, mas estas pétalas me traziam a luz e seus odores me extasiavam. Ao me abaixar para beber água acabei por colocar a mão em uma coisa peluda. Assustei-me e dei um sobressalto. Apavorado procurei me defender. Mas não havia nada ali. Eu só poderia estar maluco. Olhei mais de perto e tive a impressão de ver o couro de um animal preto semi enterrado no chão, semi decomposto por vermes. Não tive como reconhecer de que animal se tratava, não era nenhum dos que eu conhecia. Tive nojo em ter bebido aquela água. De repente, senti centenas de formigas pelos meus braços e pernas. Debati-me violentamente até expulsá-las. Como o pânico havia me dominado, tratei de correr desesperadamente. Os segundos pareciam horas.
Não entendia nada do que estava acontecendo. Por fim tentei recordar a sensação quente daquela coisa peluda. Era macia como pelo de gato, mas a pelagem era mais comprida e espessa, como a de um cachorro ou urso.
Já mais perto de nosso rancho, senti novamente outra sensação estranha, embora houvesse esfriado com o cair da noite, eu sentia uma confortável quentura em minha pele e, como estivesse correndo desesperadamente, o suor estava ausente de minha pele.
Quando aproximei do barraco, a cadela latiu nervosamente para mim. Estranhei, pois ela nunca me ameaçava, éramos cúmplices de infantis brincadeiras, de forma que não entendi sua atitude violenta. Quanto mais eu chegava perto, mais bravia ela ficava, até que o velho abriu a porta e gritou apavoradamente: “- Deus e minha Nossa Senhora me salvem!” Eu apertei meu passo em sua direção para atender seu apelo, mas o velho mirou em mim a espingarda e atirou no meu peito. Ao cair sangrando, surpreso, sob a luz do lampião que iluminava o terreiro, deparei-me chocado com minha última experiência em vida: minha pele estava como aquela da fera do riacho! Saiam pelos horrendos de meus braços e pernas. Como último gesto, toquei minha face, senti meu focinho com minhas garras. Eu me tornara um monstro.
Ao acordar senti uma forte dor no pescoço. Estava deitado em minha cama. Não tive coragem de abrir os olhos. Tentei levantar, mas minhas pernas não respondiam aos comandos. Ergui a cabeça e vistoriei meu corpo. Toda aquela pelagem negra desaparecera. Com mais coragem, dei nova ordem as minhas pernas que, desta vez, obedeceram. Quando sentei na beira da cama pude constatar meu pesadelo e pensei que estivera sonhando. Mas ao olhar para o canto do quarto, vi a horrenda fera do riacho ressuscitada que agora me vigiava com dentes ferozes a mostra. Gritei por socorro chamando o velho e a fera respondeu com sua voz: “- Estou bem aqui!” Mostrou novamente seus caninos e num salto pulou sobre meu corpo rasgando minhas carnes.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Conto do Carro a Cento e Setenta

Bem, o que passo a contar aconteceu há uns três anos. Era uma quarta-feira fria e escura. Saí do trabalho lá pelas sete horas. Estava com uma fome enorme. Fui para o bar, lá fiz um lanche e comecei a beber, como sempre... No primeiro trago uma promessa: hoje é só esta cerveja. No segundo, uma realidade, já não cumpriria a tal promessa. Meu amigo Pedro apareceu e lá ficamos a conversar. Eu estava tranqüilo.Havíamos bebido deliciosas cervejas, inebriantes vinhos, um caloroso conhaque, uma garrafa de... esqueci, acho que era vodca. Eu não lembro direito das coisas quando bebo vodca. Mas bem, voltemos ao conto.
Ao sair fui direto para casa. Lembro sentir um entusiasmo alucinante, mas não me achava embriagado, afinal foram apenas alguns drinks... No ônibus já não me continha, a pressa estava me matando. Quando subi as escadarias, senti uma forte energia, um ímpeto incontrolável... lá estava ele... meu carro, na garagem, possante, seis cilindros. Eu tinha mania de ir ao trabalho de ônibus e usar o meu carro só para passear.
Peguei a chave e sai com a super máquina... Faróis acessos, uma leve neblina... passei no posto de combustível, abasteci, comprei três cervejas e um charuto cubano. A noite estava com um indescritível ar de novidade. Avenida livre, cento e setenta. O ronco era lindo, a velocidade, sempre a velocidade..., tudo parecia não ter controle e na barriga, o frio de um punhal penetrante de gelo. Ao acabar o trecho, senti que o motor deu uma falhada... tentei manter a aceleração... não recordo bem, acho que o motor pareceu perdeu potência....
De repente tudo voltou ao normal... fiz um retorno no final da pista e voltei o mesmo trecho... cento e setenta... agora mais firme, sem temores, friamente segui nesta velocidade o quanto pude... a avenida estava estranhamente deserta. As curvas eram longas e permitiam acelerar. Meu cérebro calculava friamente as manobras, era como se eu estivesse em um autódromo naquela larga avenida deserta. Ao chegar a minha casa, subi lentamente as escadas, a neblina envolvente agora era densa cobrindo tudo. Abri a porta e deixei cair uma das cervejas que não quebrou. Liguei a tv e fiquei bebendo e fumando. O charuto tinha um gosto suave e adocicado. A fumaça era como a neblina lá fora, densa e envolvente. Na mistura de gostos estava o verdadeiro segredo da combinação, só lembro que adormeci.
Bem, ao acordar já era de manhã, estava esperando minha mulher, ela devia ter chegado... não consegui ir trabalhar... senti-me frio... olhei para fora e ainda havia neblina...Tentei telefonar, mas ninguém atendeu....nem o disk pizza... fiquei um tempo deitado e o dia passou todo enquanto eu ficava lembrando da velocidade. Quando a noite chegou percebi que eu havia mudado, só não detectava em que consistia a mudança. Olhei na garagem e lá estava o meu carro. Fiz o mesmo trajeto da noite anterior. Não havia ninguém nas ruas...
Bem, de lá para cá faço isto toda noite tentado entender se alguma coisa aconteceu comigo naquela reta, na hora que o motor falhou. Meus telefonemas ninguém atende. O telefone não toca e na rua não vejo ninguém. Tudo está sempre dramaticamente deserto. Além de rememorar aquela noite, o que faço e só ficar pensando... por onde anda minha mulher...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Aventuras de John Stills na beira do porto.

Cheguei na beira do porto haviam três barcos encostados. Um deles com uma bandeira preta de pirata. Pensei ser um daqueles barcos de turista. Não dei bola. Segui em frete e vi na placa, “rodízio de camarão”. Pensei na fome que me atordoava, no sol forte e entrei sem dar conta se tinha ou não dinheiro para pagar a conta. Logo pedi uma cerveja, ela veio gelada. Olhei para os lados não havia ninguém. Ei, espere!, havia alguém lá no fundo escuro do bar! Com uma grande caneca e um chapéu de costas para mim. Roupas de pirata. De repente, duas meninas índias entraram no bar e cruzaram todo o salão. Sumiram atrás de cortina. Pensei no calor, dei um gole na cerveja e abri minha carteira. Tinha algum dinheiro. As duas meninas voltaram sorrindo, mas não para mim. Lá atrás, o pirata com perna de pau fumava um cachimbo com cheiro de chocolate. Percebi que tinha entrado em um filme. O diretor gritou "Corta" e eu fiquei encenando a mim mesmo. Fiz o meu papel cotidiano de otário com cara de otário. Esse, desde que lembro, foi sempre meu melhor papel. O pirata levantou segurando em uma das mãos sua caneca pela metade. Sorri como alguém que está em um filme. O diretor gritou “ação” e me fiz de idiota sem qualquer esforço. Pensei que o mundo era feito de câmeras a nos espionar, tipo 1984, depois cai na real, nada pior que olhos. O pirata abriu um mapa velho do tesouro. Atrás dele, as duas índias deixaram voar algumas araras coloridas. Minha porção de camarão fedorenta chegou trazida por um garçon invisível. Fiquei olhando para as ondas tolas atrás do vidro que separava os camarões fritos do mar. Pensei “acho que estou no Brasil”, mas tive sérias dúvidas. Aí lembrei de uma piada que não tem graça nenhuma e tive certeza que estava na Colombia. Depois pedi outra cerveja. As índias voltaram fumando um cachimbo com cheiro conhecido. Fiquei de cara. Eu seria um estrangeiro? Nada disso, comi um camarão com limão. Pensei na noite anterior. Lembrei das loucuras todas, como aquele cara poderia ser eu? Esqueci-me de mim mesmo. Joguei meu cartão de crédito sobre a mesa e pedi ao garçon a conta. Tudo é tão fácil quando se tem dez vezes para pagar. O pirata me olhou como um vendedor de livros. O papagaio em seu ombro gritou “América”. Vi as duas índias trocando alguns dólares com dois colombianos de chapéu panamenho. Senti dor de barriga e dei um grande gole na cerveja quente e gritei em minha cabeça “Nada será melhor que o Agora...” escrevi um poema:

A Vida Doce,
mais que nunca, reclama
pelo sol que abre os sonhos
aqui e em qualquer lugar.

A Poesia, sim!
Sempre a Poesia
é que abre o sol,
mesmo quando chove.

Doce Vida,
teus lábios beijo,
como amante te quero
desfrutar em abraços!

Boemia, minha amiga,
nunca me deixas só!
Vida Doce e Boemia,
as melhores mulheres
que um homem
pode ter!